Beirute após a explosão: traumas e o caminho para a reconstrução

No último dia 4 de agosto, em um lapso de poucos segundos, 40% de toda a cidade de Beirute voou pelos ares. Num piscar de olhos, o destino da capital libanesa, de seus habitantes e de seu vasto patrimônio arquitetônico mudou radicalmente de direção. Tempo e memória, elementos que se sedimentam lentamente ao longo dos séculos sobre a paisagem urbana de uma cidade, foram soprados para longe com uma força arrebatadora, deixando uma onda de destruição até maior que as mazelas causadas por uma guerra civil que durou 15 longos anos. Pegando todos de surpresa, as duas explosões varreram as marcas do passado, apagaram aquelas do presente, arruinando as muitas aspirações futuras de toda uma nação.

A explosão do último dia 4 de agosto no porto de Beirute, em pleno coração da histórica capital libanesa, destruiu uma vasta área da cidade, atingindo os bairros de Mdawar, Rmeil, Gemmayze, Achrafieh, Mar Mkhayel, Karantina e Geitawi. Segundo o Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, mais de 200.000 unidades residenciais foram gravemente afetadas pelas explosões, somando um total de aproximadamente 40.000 edifícios danificados, dos quais 3.000 já foram condenados pela defesa civil.

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© Rami Rizk
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Beirut Before the Blast. Imagem © Rami Rizk

Cidades ao redor do mundo, como territórios de disputa e poder, são a maior representação dos principais desafios sociais e políticos de uma nação. Favorecida por sua estratégica localização geográfica sobre uma pequena península no sudeste do mar Mediterrâneo, a cidade de Beirute passou por um vertiginoso processo de crescimento a partir do início do século XIX, transformando-se em um elemento chave de conexão entre o leste e o oeste do mundo, um ponto central nas principais rotas comerciais desde tempos imemoriais. Como um reflexo de seus habitantes, hoje a cidade está dilapidada, despedaçada, despojada de seus mais importantes artefatos históricos e sem saber para onde ir. Procurando compreender melhor as consequências da explosão do dia 4 de agosto para o passado, o presente e o futuro da capital libanesa, este artigo — ricamente ilustrado por uma série de imagens exclusivas do fotógrafo libanês Rami Rizk — explora os caminhos possíveis para a recuperação de Beirute, acompanhe à seguir para saber mais.

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Danos físicos 

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Beirut Before the Blast. Imagem © Rami Rizk

O tecido urbano “híbrido” da capital era conformado por uma mistura de estruturas construídas no final do período otomano, durante a ocupação francesa do Líbano além de adições modernistas e estruturas contemporâneas erguidas mais recentemente. De acordo com os últimos relatórios, 730 edifícios de caráter histórico, construídos principalmente entre 1860 e 1930 foram gravemente danificados, dos quais 331 foram completamente perdidos. Entre estas trágicas vítimas encontra-se o famoso palácio Sursock, construído em 1860 por Moussa Sursock e um dos mais belos expoentes da arquitetura libanesa deste período. Anexo ao palácio, o museu Sursock, que levou mais de 20 anos para ser totalmente restaurado após o término da guerra civil do Líbano, também não teve melhor sorte. Entre outros edifícios históricos condenados estão a famosa sede da Electricité du Liban e o edifício Casa da Guarda. Além disso, outros 3.000 edifícios de valor inestimável para a cultura e arquitetura do país – embora não tenham sido tombados pelo órgão de patrimônio histórico do Líbano —, estão à beira do colapso.

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Atingindo casas e edifícios à uma distância de até 20 quilômetros do epicentro da explosão, uma série de estruturas modernas e obras de arquitetura contemporânea também não passaram ilesas à tragédia do dia 4 de agosto. Edifícios recentemente projetados por importantes nomes da atualidade como Bernard Khoury, Lina Ghtomeh e Nabil Gholam, sofreram graves danos físicos, perdendo parte de seus revestimentos além de todas as janelas e elementos de vidro, madeira, metal e alumínio —, sem falar em rachaduras e trincas, as quais podem ser vistas por toda parte. Bem ao lado do porto, os enormes silos de concreto, estruturas de 50 metros de altura carregadas de grãos, protegeram boa parte da região sul da cidade da onda destrutiva. Ainda de pé, estas impressionantes estruturas inauguradas em 1971, funcionaram como uma espécie de amortecedor, segundo especialistas. De acordo com estimativas publicados pelo Banco Mundial, os danos à infraestrutura e aos ativos físicos na capital libanesa podem chegar à ordem dos 4,6 bilhões de dólares.

Engajamento social e político

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É comum dizer que os cidadãos têm a cidade que merecem, por isso, é importante que as pessoas se mantenham engajadas social e politicamente e que lutem por seus direitos. Em um momento de crise como este, é fundamental que a população local se mantenha engajada e fiscalize os trabalhos de reconstrução. Neste contexto, quase que de forma automática ou pela força do hábito, a comunidade local mobilizou todos os seus esforços e resolveu abordar esta questão imediatamente após a tragédia. Através de iniciativas individuais e coletivas, ONGs e organizações sem fins lucrativos, a sociedade civil organizada está se transformando no principal motor para a reconstrução da cidade, dando início aos processos de planejamento e projeto, embora ainda timidamente. Mas a pergunta que não quer calar é: a população organizada será capaz de reconstruir sua própria cidade sozinha? Enquanto pouco se sabe sobre como será o processo de reconstrução da cidade de Beirute, percebe-se uma tendência mundial—em esforços desta ordem—em direção à abordagens mais centradas nas pessoas e que incluam processos participativos.

Lições do passado

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Boa parte da comunidade criativa e acadêmica da capital libanesa espera que os mesmos erros do passado não voltem a se repetir. A reconstrução do país após o fim da guerra civil nos anos 90, principalmente da região central de Beirute, foi regida pelo interesse de alguns poucos magnatas do mercado imobiliário, distorcendo completamente o tecido urbano e social pré-existe da capital. Desapropriação desmedida e privatização à toque de caixa transformaram o centro da cidade em um espaço vazio e isolado. E isso que, na história do Líbano, esta não foi a primeira vez que esse tipo de abordagem havia sido utilizada. Durante a ocupação francesa do país ao longo da primeira metade do século XX, os primeiros trabalho de reconstrução seguiram uma lógica muito parecida aos trabalhos do pós-guerra. A desapropriação de terra e edifícios foi o principal instrumento utilizado para a construção de novas infraestruturas no centro da capital. Temendo pelo pior, em uma corrida contra o tempo, a população organizada está cobrando uma nova abordagem e posicionamento das autoridades para a futura reconstrução da cidade.

Em defesa do patrimônio cultural

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Em se tratando de reconstrução, a nível técnico, todos os edifícios anteriormente existentes poderiam ser restaurados. Entretanto, na prática, o principal problema é quem irá bancar os onerosos custos de restauro e reconstrução destas estruturas. Muitos moradores já estão temendo um voraz processo de gentrificação, ou pior, que todo o patrimônio de uma cidade vá parar nas mãos de alguns poucos incorporadores gananciosos, explorando a situação de vulnerabilidade de milhares e milhares de pessoas para seu próprio benefício. Por isso, muitos habitantes da capital armaram acampamento em seus terrenos e edifícios em ruínas na tentativa de proteger o pouco que restou, utilizando escoras para impedir que a sua própria dignidade desabe junto com as paredes de suas casas.

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Em uma situação como esta, que demanda a reconstrução de toda uma cidade, não são apenas os edifícios tombados e protegidos que deverão ser reabilitados, mas quadras e bairros inteiros que terão de ser reconstruídos do zero. Portanto, as regras devem ser estabelecidas à priori, garantindo a transferência do direito de construir para outras áreas da cidade por exemplo, compensando devidamente cada um dos proprietários. Ou seja, atualmente a lei permite construir áreas muito maiores e edifícios muito mais altos no centro da cidade, mas ao invés de substituir estas antigas estruturas por novos arranha-céus, as autoridades poderiam criar mecanismos para transferir o direito de construir destes proprietários para outras áreas da cidade que também necessitem—e possam—ser adensadas.

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Por outro lado, a UNESCO lançou recentemente o Fundo para a Recuperação da Cultura, do Patrimônio e da Educação da cidade de Beirute, a fim de melhor proteger as antigas estruturas do centro histórico da capital e assim prevenir a especulação imobiliária e a consequente gentrificação. Segundo a própria UNESCO, será necessário investir aproximadamente 500 milhões de dólares para a recuperação do patrimônio e da economia local no próximo ano.

Memória coletiva de Beirute

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Cansados de romantizar a resiliência característica desta cidade e de seu povo, o que mais atormenta os libaneses são as incertezas do futuro. Por quanto tempo eles serão capazes de aguentar juntos essa tormenta? A avassaladora destruição da capital libanesa não se limita apenas a perdas físicas, as explosões abalaram também o orgulho de uma cidade e tudo aquilo que ela representa. Como um farol de esperança, esta cidade às margens do Mediterrâneo sempre representou o otimismo de um povo que precisou abandonar à força a sua própria pátria. Beirute já não é a mesma cidade de outrora assim como seus habitantes já não são mais os mesmos de cinquenta anos atrás, não se trata de apenas de reconstruir uma cidade e curar aos feridas que castigam toda uma geração, hoje, é a memória coletiva ligada a esta terra que está correndo sério perigo, demandando um urgente posicionamento de seus governantes.

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Sobre este autor
Cita: Harrouk, Christele. "Beirute após a explosão: traumas e o caminho para a reconstrução" [Beirut: Between a Threatened Architectural Heritage and a Traumatized Collective Memory] 03 Set 2020. ArchDaily Brasil. (Trad. Libardoni, Vinicius) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/947028/beirute-apos-a-explosao-traumas-e-o-caminho-para-a-reconstrucao> ISSN 0719-8906

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